Caixa de Desenho + Biblioteca Natural II (PT)

por Maria De Fátima Lambert
Catarina Leitão na Quase Galeria e no Museu Nacional Soares dos Reis

Preocupa-me a natureza do solo, por isso me imponho certa unidade de flora e fauna, uma ligação mineral, as articulações meteorológicas. Mas a paisagem move-se por dentro e por fora, encaminha-se do dia para a noite, vai de estação para estação, respira e é vulnerável. Ameaça-a o próprio fim de paisagem. Pela ameaça e vulnerabilidade é que ela é viva.
Herberto Helder, Photomaton & Vox

«Chemins qui ne mènent nulle part (…)
Chemins que l’on dirait avec art (…)
Chemins qui souvent n’ontDevant eux rien d’autre en face (…)» (1)

A minha viagem pelos desenhos de Catarina Leitão foi iniciada em 2006, quando escrevi acerca do que designei por “…the baroque drawings of the contemporary persons, objects or landscapes projected in lands of frightened utopias – Catarina Leitão”. Por então, esses trabalhos visitaram França, Espanha, Itália, Áustria, Lituânia, regressando depois a Portugal, onde foram apresentados no Museu Amadeo Souza-Cardoso [Amarante], cumprido o seu périplo no contexto do Salon de Montrouge – Jeune Création Européene. Tratava-se da instalação composta por 9 desenhos da Série Os personagens, os objetos e as paisagens (2006). Estranhas criaturas, vegetações enigmáticas, objetos alterados que se coadunavam quer às instalações, quer às peças tridimensionais produzidas pela artista durante a sua permanência em Nova Iorque e, obviamente, na cumplicidade à excelência de outras séries de desenhos que a antecederam e lhe sucederiam. As formas híbridas são um tema recorrente na sua obra, consignando morfologias situadas entre topografias ficcionais e a acuidade da observação da natureza que não se pretende, absolutamente nada mesmo, ficar na plataforma descomprometida da paisagem inventada apenas para fruição estética. O seu trabalho assumiu, desde sempre, um compromisso não apenas designativo, apontando para [e de] uma intencionalidade artística, mas propugnando pela intervenção deliberativa, concretizada pela rotina perseverante e disciplinada de uma vida como todo.

A etapa seguinte prosseguiu em 2011, traduzindo-se da grande instalação da Série Invasive Species, montada na Casa das Artes de Vigo, integrada no programa de exposições-curadorias, prolongamento na Galiza, da XVI Bienal Internacional de Cerveira.
Os desenhos “suspensos” haviam viajado desde o Palácio do Marquês / Carpe Diem – Arte e Pesquisa em Lisboa, onde tinham sido mostrados no ano anterior. A propósito da sua participação na exposição Arqueologia do Detalhe, transcrevo: “Os desenhos apresentam-se “suspensos”, entrelaçando percursos que nos permitem visitá-los. Geram-se assim percursos “abertos” que a cada visitante cabe dirigir. Existem intervalos de espaço entre os desenhos que pendem, possibilitando ao público a melhor condição para exercer os seus atos de observação e contemplação. A proximidade aos desenhos pintados propicia a descoberta de minuciosas iconografias que dispõem para formas orgânicas – da flora, para a reconformação de objetos sem funcionalidade pensada e para grafismos geométricos ganhando volumetria através da perspectiva e da densidade de cor. Os diminutos pesos que garantem a estabilidade dos desenhos são quase um olhar de pausa que podemos fixar. Como se o peso da realidade quisesse ver-se superior a toda capacidade de exercer os actos do imaginário: “…apresenta uma instalação, com desenhos sobre papel, sequência da sua investigação sobre questões relacionadas com a natureza e o espaço construído. Invasive species estabelece um diálogo com o Palácio [do Marquês de Pombal] e convida o espectador a observar e deambular por um universo desenhado, com perfurações, sombras, máquinas impossíveis e cores, criando um espaço de vivência sensorial.” (Paulo Reis in Invasive Species).

Os desenhos pintados são protagonistas contemporâneos, são objectos e paisagens, escolhidos com acuidade e rigor pela artista que assim revela uma metodologia poiética na concretização da obra como todo, cuja uniformidade é adquirida através da heterogeneidade morfológica e criterial. A fundamentação conceitual traduz-se em excertos seleccionados e revelados do seu Umwelt: quer sejam alusivos a antropomorfias, zoomorfias ou espécies imaginárias fugidas da botânica ou da mineralogia…são utopias projectadas em paisagens de papel. Os desenhos agudizam a contemplação, num vaivém de sinuosa verticalidade que induzem ao congelamento do ver, estacando em unidades dessa “Contemplação do mundo” a que aludiu Michel Maffesoli e instaurando jornadas, mapeamentos numa variante desse “Atlas de Emoções” assinalado por Giuliana Bruno.”

Após um hiato, colmatado pela presença de desenhos de Catarina Leitão, em duas exposições coletivas – respetivamente Passeante no Mundo [1] e Drawing Again [2] (2011 e 2012), realizadas igualmente na Quase Galeria, surge agora a ocasião de abordar, de preencher – “quase” na íntegra – esse mesmo espaço com a exposição intitulada Caixa de Desenho.
A presença da obra da artista no Porto, em 2017, estende-se ao Museu Nacional de Soares dos Reis, mediante a incorporação provisória na Sala de Aurélia de Sousa, de Biblioteca no Museu. Aí, as peças concebidas pela desenhista podem ser analisadas, na qualidade de “quase relíquias” dentro de uma vitrina antiga, mobiliário usada muitas décadas atrás para expografias em Museus nacionais. Esta vitrina divide-se, apresentando divisões em simetria inclinada, onde se anicham elementos de desenho minuciosos e exíguos de excesso. À distância, mantêm-se as subtilezas rigorosas do detalhe e da arqueologia, dirigindo a excelência do desenho. O desenho que é a matriz.

Quando da coletiva Drawing Again, inaugurada em julho de 2012, tomei como epígrafe “…(chamo silêncio à linguagem-que-já-não-é-orgão-de-nada)…”[ d’après Pascal Quignard in Histórias de Amor de outros tempos]. Esta frase do escritor francês que tanto nos apela ao silêncio, pois que o ruído se supõe e reverbera, ecoando. Logo no início do texto que introduzia as obras apresentadas assinalei que “O desenho, na contemporaneidade e no presente, assumiu uma autonomia, à semelhança do sucedido com disciplinas científicas, como foi caso, da estética relativamente à filosofia. O desenho deixou de ser considerado como fase intermedial ou preparatória para concretizar uma expressão artística finalizadora. Os artistas, ao longo do século XX, “descobriram” o desenho, muito em particular – e na perspetiva emancipatória, depois dos anos 1950.” Penso que estas afirmações enquadram a natureza do trabalho resiliente e rigoroso de Catarina Leitão. Os seus desenhos são morfologias vegetais, razoabilidades antropomorfizadas que extrapolam esteticismos e, ainda, que solidificam convicções “etnofocadas” e causas societárias. A natureza presentifica-se na composição quase vazia, remetendo ao essencial que, nalguns casos, precisa de ser segmento e situar-se isolado, para melhor explicitar as suas idiossincrasias maiores.

“Drawing is often characterized as the most intimate art form.” (2)

A aproximação física ao desenho, para melhor o observar direciona para uma intimidade que não somente a de quem o realizou. As dimensões e técnicas, tanto quanto os seus conteúdos iconográficos (e semânticos) determinam a colocação, a postura, tudo aquilo que um corpo exige para olhar em detalhe e pormenor ou em distanciamento e perspetiva. O desenho implica, assim, uma ação por parte do espetador, tornando-o protagonista de um ato de conhecimento singularizado. O desenho constrói, por assim dizer, identidades diferenciadas perante uma mesma proposta gráfica. Ou seja, o desenho rege a constituição de uma linha de movimento do corpo do espetador, sua cativação e sequencialidade no ato de ver. [« J’ai découvert que dessiner n’était pas seulement/regarder, mais aussi toucher. » Jan Fabre] Neste sentido, “ver” um desenho será efetivamente “desenhar”, pelo movimento do corpo próprio (do espetador), um ato único de perceção visual.
O desenho persiste e consolida mais e mais a sua urgência na contemporaneidade, tendo absorvido as distintas aceções e escopos que lhe advêm da história. Sabe-se quanto o desenho se tornou moda em alguns nichos de criação artística, associado quer à formação em contexto de ensino artístico, quer articulado a outros suportes e registos, organizando cruzamentos artísticos inesperados, por vezes. A investigação académica sobre o desenho viaja entre territórios, progredindo para uma melhor apreensão da sua polimorfia, energia e conceitualidade expandidas. As práticas artísticas contemporâneas não conseguem escapar ao desenho.

O conceito de desenho, em algumas abordagens, encontra-se associado não apenas ao espaço (na sua suposta abstração ou efetividade) mas a localizações tipológicas. Conhecemos, a título de exemplo e ao longo de anos, os lugares de desenho (Fundação Júlio Resende), gabinetes de desenho (Pedro Saraiva), laboratórios de desenho (Susanne Themlitz), para mencionar apenas alguns. Sucedem-se e extrapolam-se antevidências metamórficas sobre a realidade, convertem-se as visões filosóficas do mundo em algo tangível pelo desenho.

Porque não ter a minha casa, a minha sala de estar com vista para este palmo de terra, em vez de um fraco conjunto de curiosidades, um pobre pretexto para a Natureza e para a Arte a que chamo o meu pátio da frente?(3)

No caso de Catarina Leitão, o desenho organiza a sua paisagem, domesticando-a e reatribuindo-lhe a condição de ser natureza. Ou seja, a artista escolheu um lugar para viver/residir que lhe permite a maior coerência entre uma atuação em plena consciência de natureza e de antevisão de desenho. O desenho é cultivado na terra e germina no papel, nos fios, nos dispositivos ou nos livros de artista que concebe e realiza. Tudo está em tudo, diria Hermes Trimesgisto.

O desenho [com] que Catarina Leitão aborda [n]o espaço transporta a mestria lúcida que Francisco de Holanda nos legou, traduz-se na assunção crítica e na sofisticada acuidade. Caraterísticas e qualidades do debuxador transformam com minúcia o que se vê; abordam, com raridade virtuosa de pensamento, a atitude subjacente à sua consecução. Agrega conhecimentos específicos, cúmplices e parceiros de ciências e técnicas que acompanham os movimentos do humano individuado e gregário, na cronologia e na efemeridade transversa.
Mediante a conceção e práxis do desenho, comunica-se, pensa-se, sente-se através do desenho que simples ou complexo é antegráfico, parafraseando Almada Negreiros – linguagem visual anterior à escrita. Subjaz em quase todos os entendimentos, configura as atuações e atividades expressivas, preenche as notações musicais ou coreográficas, esquematiza, enuncia e diagrama as maiores complexidades de cálculo – singelo ou hermético. Possui uma vitalidade que brotará em terrenos impossíveis de cultivar, em levitações de quotidiano, facilitando a condição de existir, tornando mais leve “esse peso giacomettiano que é a vida”, como diria Paulo Reis(4).

Quem senão o Anjo Caído teria gritado “Alto lá” à humanidade? (5)

Neste ano de 2017 celebram-se os 200 anos de Henri Thoreaux. No seu livrinho emblemático Caminhando, o pensador norte-americano, questionava-se porque e onde estivesse a literatura que abordasse, que expressasse a Natureza, queixando-se de a ver ausentada.(6) Fala-nos acerca da sofreguidão inconsequente (?) com que pretendem atingir da Natureza, glosando paradigmas poéticos que são seus, e outros não anteviram ou acharam. Assim, Henry Thoreau constata e partilha o que possa ser o desfecho civilizacional. Na medida em que se considere quanto as artes influenciam e, paralelemente, sobrevêm da atitude, postura ou convicção que cada um delibere seguir, perante e quanto à Natureza, assinalando que “…todos os homens sentem uma atracção por algo que os impele para a sociedade, poucos se sentem atraídos pela Natureza.” (7)

A natureza cresce dentro de casa, dentro do ateliê, subvertendo as orientações mais impensadas da sociedade atual. A natureza sedentariza-se, lembrando Michel Mafesolli, quando a propósito do que designou por “violência totalitária”, comenta:
“Violência feita às pessoas, violência feita à natureza. Violência que pode ser temperada mas que nem por isso é menos real. (…) pode-se dizer que a domesticação está na passagem do nomadismo para o sedentarismo.” (8)
Sabendo como a vida e a obra de Catarina Leitão se interpenetram, por via da sua inscrição na Natureza, o autor oitocentista surge como uma figura tutelar para a explanação do seu pensamento, mediante uma pragmática da atitude e ação artística, em prol de um escopo que é acionado pela estética e filosofia comprometida com a utopia em vias de ser concretizada per se. Assim se compreende que na caixa de desenho se guardem inúmeras possibilidades de redimir o mundo, pela cautela da Natureza: natura naturans e natura naturata.
A sua realidade é real, é ficcional, é – tendencialmente – abstrata, na medida em que radica na essencialidade última do desenho.

Como se adiantou antes, as obras guardadas na vitrina antiga, colocada na Sala de Aurélia de Sousa no Museu Nacional Soares dos Reis, reverberam efabulações tratadas a partir do estudo acurado, da pesquisa insaciada e das condições de exigência que a artista se coloca no terreno.

Na Sala, os desenhos-estudos de Catarina Leitão, saem dos livros organizados nas estantes pintadas no quadro O vestido Verde, da pintora portuense, cujos 150 anos de nascimento se comemoraram em 2016, tendo por essa ocasião a tela sido adquirida para a Coleção do MNSR. Também se acompanha das cenas de interior, autoria de Sofia de Sousa ou, ainda da representação da mulher do pintor Artur Loureiro, que foi retratada na sua condição de pintora, ainda que quase desconhecida essa sua prática. Curiosa portanto esta transposição de tempos, onde a assunção da artisticidade, cumprida pela mulher artista se impõe, sem que se senão como sendo ARTE.

Entre alguma invisibilidade de razões conducentes de problemáticas societárias, tanto quanto estéticas, o nomadismo que, por vezes, parece determinar as sinuosidades quase labirínticas de alguns desenhos, as formulações arquetípicas de outros – consignadas ou subsumidas à tradição do desenho científico, encontram destino consequente na Biblioteca Natural II que se instala no Museu. A Biblioteca no Museu… diria eu…feita de desenho, feita de natureza que, em espiral, decifra o atravessamento do espaço e do tempo, guardando-os como relíquias, detalhes, lembrando Daniel Arasse.

Os livros de artistas aconchegam os desenhos, outorgando-lhe uma tridimensionalidade inesperada mas quieta. A tranquilidade das formas que se sabem a existir no contorno, no recorte e no delineamento certos, transitam pelo nosso olhar surpreendido, quase incrédulo perante uma beleza que é, simultaneamente, perturbante – como talvez seja toda beleza, desde que os gregos lhe conferiram o dom da inquietude e do pathos. Talvez seja estranho, irregular, o facto de sedentarizar numa mesma obra que é um livro, essa dupla vivência consignada em tormentos de sublimidade e agrado ao gosto. As referências conduzem-nos ao espanto que nos é familiar, ao relembrar os livros de infância que se desprendiam da superfície lisa, irrompendo em meio do nosso riso ou talvez insinuando o medo.

“A paisagem em volta esvaziada de sentido, reflectindo-se nos meus olhos, brotava dentro de mim…” (9)

Os cadernos-livros-de-artista apresentados pela desenhista jogam com a mesma corporalidade, com a fisicalidade das matérias dúcteis que foram ocupar a sala da Quase Galeria. Se nessa Sala, o espaço se contornava entre vazios barrocos e traçados geométricos, a justeza centrava-se na organicidade das morfologias, nos livros dentro da vitrina, segura-se uma ficcionalidade que é incontrolável e nos confirma as razões de Gilbert Durand quando assinalava as estruturas antropológicas do imaginário… Fica provado como das mãos saem linhas bidimensionais, se dobram papéis convictos e esculpem matérias moles, tecidos que se adiantem pelo espaço adentro como se fossem parte de uma tela maior que a escala humana, para que nela exatamente cada um de nós caiba e seja a figura na natureza com o perigo de que esta se continue em paisagem mental, quando a deixarmos no nosso trajeto.

“A duração não aliena,
leva-me ao caminho certo.”(10)

A duração ou o instante serão apenas um singelo pormenor dúbio; a demora será domesticada pelas espécies invasivas que Catarina Leitão recolhe delicadamente, aguçando-lhes o perigo.
Relembrando Xavier de Meistre: “a imaginação perde-se em caminhos silenciosos deste país ideal; os longínquos azulados confundem-se com o céu, e toda a paisagem, repetindo-se nas águas de um rio tranquilo, constitui um espectáculo que língua alguma pode escrever.”(11)

Maria de Fátima Lambert
Abril 2017

Texto na brochura da
Exposição na Quase Galeria/Espaço T
e Intervenção no Museu Nacional de Soares dos Reis
curadoria Maria De Fátima Lambert
produção Quase Galeria/ Espaço T: Leonel Morais
organização Museu Nacional Soares dos Reis: Maria João Vasconcelos
produção Museu Nacional Soares dos Reis: Jaime Guimarães

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1 Rainer Marie Rilke, « Chemins qui ne mènent nulle part », Les Quatrain Valaisans.
2 Ian Berry and Jack Shear, « Introduction », Twice Drawn – Moderna and contemporary Drawings in context, The Francis Young Tang Teaching Museum and Art Gallery at Skidmore College and Prestel Verlag, Munich, London, N.Y., 2011, p.9.
3 Henry David Thoreaux, Caminhando, Lisboa, Antígona, 2012, p.50.
4 Paulo Reis (Maragogipe/Bahia, 1960- Lisboa, 2011) foi fundador e diretor de Carpe Diem – Arte e Pesquisa, Lisboa.
5 Henry David Thoreaux, Caminhando, Lisboa, Antígona, 2012, p.62.
6 Henry David Thoreaux, Caminhando, Lisboa, Antígona, 2012, p.57.
7 Henry David Thoreaux, Caminhando, Lisboa, Antígona, 2012, p.73.
8 Michel Maffesoli, Sobre o Nomadismo, Rio de Janeiro, Record, 2001, p. 24.
9 Yukio Mishima, O templo dourado, Lisboa, Assírio & Alvim, 1985, p.149.
10 Peter Handke, Poema à duração, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p.77.
11 Xavier de Meistre, Viagem à roda do meu quarto, Lisboa, & etc, 2002, p.33.